* Fábio Kühn
O autor dos Anais foi um homem que viveu em um período singular, marcado pela transição entre o Antigo Regime português e a nova ordem liberal instaurada no Brasil oitocentista. Sua história de vida reflete bem esses câmbios, desde o nascimento em Santos, em 09 de maio de 1774. Seus progenitores foram D. Teresa de Jesus Pinheiro, que pertencia a uma família tradicional da capitania paulista e José Fernandes Martins, um abastado comerciante português, natural da vila de Guimarães. A prosperidade familiar lhe permitiu estudar em Portugal, onde se matriculou, em 1792, no Colégio de Artes da Universidade de Coimbra, concluindo em 1798 o curso de Direito Canônico. Após a formatura, trabalhou por três anos como tradutor na Quinta do Manique, um reputado estabelecimento literário e tipográfico lusitano. Consta que a essa altura ele seria já protegido de Dom Rodrigo de Souza Coutinho, um dos principais ministros e conselheiros de Dom João. Esta proteção possivelmente lhe valeu quando foi nomeado (em 1800) para criar a Alfândega do Rio Grande e Santa Catarina, voltando ao Brasil no ano seguinte. Nessa altura também seria condecorado com o hábito de Cristo.
A vinda para o Rio Grande do Sul se deu em 1802, tendo dado início na sua longa carreira administrativa e política. No ano seguinte, com a criação da Junta da Administração da Fazenda Pública da capitania, foi eleito Deputado Procurador da Coroa e Fiscal da Fazenda Pública. Atuou decisivamente para a implantação da primeira Alfândega em Porto Alegre, o que se efetivaria em 1804. Manteve suas atividades de burocrata a serviço do Império português, mas com a vinda da Corte e o início do expansionismo joanino, incorporou-se ao Exército Pacificador em 1812, encaminhando-se para o Uruguai, sob o comando de Dom Diogo de Souza. Acompanhou de muito perto as tensões que antecederam a emancipação política brasiliera, tendo sido eleito em 1821 como um dos deputados da bancada do Brasil às Cortes de Lisboa. Retornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu ao Dia do Fico e seguiu novamente para Portugal, para se juntar aos demais deputados “brasileiros”.
Retornando ao Brasil, agora independente, Fernandes Pinheiro começaria a sua carreira de homem de Estado. Foi eleito em 1823, como um dos deputados sul-riograndenses na Assembléia Constituinte, mas diante da sua dissolução por Dom Pedro I, tomaria posse no ano seguinte da presidência da província de São Pedro. Em 1826 seria nomeado senador do Império pela província de São Paulo. Assumiu também o Ministério de Negócios do Império, recebendo o título de Visconde de São Leopoldo. No ano seguinte, culminando sua ascensão dentro do governo do Primeiro Reinado, seria nomeado por Dom Pedro I como Ministro plenipotenciário na negociação do Tratado com a Inglaterra, o que denotava o seu prestígio junto à Corte bragantina. Foi sócio fundador (1839) e presidente perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo falecido em Porto Alegre no ano de 1847.
Para melhor compreender a recepção dos Anais no meio ilustrado brasileiro e regional, vamos tratar das diferentes edições da obra e sua fortuna crítica. A primeira edição foi publicada em dois volumes (1819 - 1º vol.: Rio de Janeiro, Impressão Régia e 1822 - 2º vol.: Lisboa, Imprensa Nacional), sendo que a obra de Fernandes Pinheiro é considerada como a primeira história do Rio Grande do Sul, não obstante a anterioridade do trabalho de Domingos José Marques Fernandes (1804), tido por alguns como a “primeira história gaúcha” (José Honório Rodrigues, História da História do Brasil). Apesar da alcunha, o texto de Marques Fernandes foi definido pelo próprio autor como uma “Descrição corográfica, política, civil e militar da Capitania do Rio Grande de São Pedro”, se aproximando muito mais dos relatos de militares e burocratas portugueses do final do século XVIII (como Francisco Roscio e Sebastião Bettamio, por exemplo) do que da narrativa histórica redigida por Fernandes Pinheiro. Em diversos aspectos o texto dos Anais se apresenta muito mais elaborado do que no trabalho de seu antecessor. Destaca-se principalmente a maior extensão do texto, o uso de fontes primárias inéditas e trabalhos coevos, além da erudição visivelmente superior.
O primeiro impacto da obra se deu nos anos imediatamente seguintes ao lançamento do segundo volume. A polêmica foi lançada por um dos outros expoentes desta historiografia inicial do Rio Grande do Sul: nas suas Memórias Ecônomo-Políticas, Gonçalves Chaves (5ª Memória, capítulo XIII) lançou duras críticas à visão detratora do sul-riograndense que emanava de algumas passagens da obra. Na primeira edição da obra, Pinheiro descreveu a índole dos habitantes do Rio Grande: “Em geral são inertes e vários, e de natural ferino; e se excetuando as grandes povoações, onde se tem apurado a civilização, os roubos, mortes e atentados que frequentemente perpetram são segura medida para calcular os poucos progressos que ainda aqui tem feito a moral, as leis e o espírito de sociedade; o que provem parte do ruim fermento que logo entrou na massa de sua povoação”. Noutro trecho, dizia que “a inércia em que comumente vivem nas estâncias, por uma ordem imutável no Universo, a moleza, a ociosidade e a devassidão arrastam misérias e estancam a multiplicação da espécie humana”. A resposta dada por Gonçalves Chaves foi contundente: “nosso autor alucinou-se absolutamente sobre essas proposições falsas que avançou”, além de “apresentar erudição factícia e prejudicial à honra, dignidade e caráter do povo desta província”. A repercussão parece ter sido significativa, pois na segunda edição da obra, publicada em Paris em 1839 – e que serviu de base para as edições posteriores – os trechos considerados ofensivos foram suprimidos.
De toda forma, na sua versão “depurada”, os Anais acabaram virando referência para o estudo da história do Rio Grande do Sul no século XIX. A criação do Liceu Dom Afonso, em 1851, cujo currículo escolar estava fortemente influenciado pelo Colégio Pedro II, foi de grande importância para a difusão do estudo didático da história regional. Para tal, foi indicado o compêndio Anais da Província de São Pedro. É importante perceber que a obra de Fernandes Pinheiro não é propriamente didática, tendo sido escolhida por ser a única que dava uma noção global para os parâmetros da época.
A terceira edição teve que esperar mais de um século, pois a nova versão do livro seria publicada somente em 1946, com patrocínio do Instituto Nacional do Livro e inclusa na coleção denominada Biblioteca Popular Brasileira. Nesta coleção eram publicados clássicos do século XIX, como a obra de Joaquim Norberto de Sousa Silva, História da Conjuração Mineira. O que aqui interessa destacar é que a obra foi prefaciada pelo reputado historiador Aurélio Porto, um dos sócios fundadores do IHGRGS, radicado no Rio de Janeiro desde os anos 1930, onde pesquisava e divulgava documentação referente ao Rio Grande do Sul existente no Arquivo Nacional. O prefácio foi publicado postumamente, pois Aurélio Porto morreu em fins de 1945, constituindo assim um dos seus últimos contributos para a historiografia regional. No texto introdutório, ele fazia inicialmente uma breve apresentação biográfica do autor dos Anais, seguida de um arrolamento bibliográfico. Ao final, Aurélio Porto fazia uma ligeira apreciação de cunho historiográfico, onde destacava que Fernandes Pinheiro era “o primeiro historiador do Rio Grande do Sul, pois, antes dele, ninguém se aventurou a fazer obra de conjunto, somente se registrando pequenas crônicas e informes incompletos de acontecimentos contemporâneos dos autores”. Continuava, dizendo que “Fernandes Pinheiro fez obra de mérito, traçando as linhas mestras da história do Rio Grande do Sul, apreciada por um critério elevado, se bem que dentro dos moldes de seu tempo. Contemporâneo de alguns acontecimentos descritos no texto, afeto ou desafeto dos grandes obreiros da nossa formação cívica, natural é que se descubra, em uma ou outra passagem dos Anais, referências que não condizem com as nossas apreciações atuais”. Concluía, afirmando que “mesmo assim, descontadas estas, fica muita coisa no acervo deste trabalho, muito esforço inteligente, muita observação e conclusões indestrutíveis, porque foram baseadas na verdade dos documentos que foi o primeiro a exumar, concatenar e dar a público”.
A quarta edição somente viria à luz por intermédio de Viana Moog, autor do clássico Bandeirantes e Pioneiros (1954). Moog prefaciou esta nova edição, lançada pela editora Vozes em 1978 na coleção Dimensões do Brasil, onde eram também publicadas obras de autores como Euclides da Cunha, João Francisco Lisboa e Joaquim Felício dos Santos. Antes de introduzir o autor, Moog teve o cuidado de pinçar alguns excertos sobre a obra do Visconde. Assim, reproduziu a opinião de alguns importantes críticos do século passado. Na avaliação do historiógrafo José Honório Rodrigues, “Fernandes Pinheiro foi o primeiro a secularizar a história do Brasil. O significado decisivo de sua historiografia está em procurar fazer a história útil para ilustração do gênero humano. (...) Foi dos primeiros historiadores do seu tempo o que melhor soube escrever a história e um dos poucos precursores de Varnhagen na obra de secularização da nossa história”. Na opinião rigorosa de Sílvio Romero, “primeiramente ele é dos nossos historiadores do seu tempo o que melhor sabia fazer um livro. Jaboatão, Taques, Pizarro, Baltasar e outros esceveram obras pesadas, informes, desconchavadas, de leitura atribuladora. (...) O velho São Leopoldo revela-se um espírito ordeiro, claro, sem nebulosidade, sóbrio; suas idéias, se não são profundas e originais, mostram-se perfeitamente elaboradas. São filhas de uma reflexão metódica e serena”.
Na apreciação do próprio Viana Moog sobre a obra de Fernandes Pinheiro, aparece uma concepção positiva: “Ele não aceitava a história como mero repositório de acontecimentos ocasionais e sem sentido. E não era dos que pensavam que a história não requer interpretação, porque os fatos tem que falar por si mesmos. A seu ver, não só os fatos não falam por si mesmos, como requerem interpretação especial para fazerem sentido. Em outras palavras, Fernandes Pinheiro cultuava e acreditava na história, não pela história em si mesma, mas na história como ancila da ciência política e indicadora dos sinais dos tempos para o pleno exercício do ato de governar, em que foi mestre. (...) Sob esse aspecto, os Anais constituem, sem favor, a primeira grande sistematização da historiografia rio-grandense”. No entanto, Moog daria muito mais ênfase no seu prefácio ao papel de São Leopoldo como “colonizador”: “Com José Feliciano Fernandes Pinheiro, em todo o caso, não tenho a menor dúvida: sua grande criação foi mesmo o movimento migratório que desencadeou com a fundação da colônia alemã de São Leopoldo”.
A quinta e última edição da obra do Visconde de São Leopoldo foi publicada em Porto Alegre pela editora Mercado Aberto como um dos volumes da prestigiosa coleção Documenta que procurou trazer ao público gaúcho os resultados da renovação historiográfica do início do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Como prefaciante o escritor Décio Freitas, que, ao contrário dos seus antecessores, não poupou a obra de Fernandes Pinheiro. Como única concessão, reconhecia logo na abertura do seu texto: “Esses Anais da Província de São Pedro, de autoria de José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo, assinalam o nascimento da historiografia sul-rio-grandense”. Mas, em seguida começa uma caracterização não de todo favorável: “Pelas suas origens sociais e pela sua carreira política, o Visconde de São Leopoldo se credenciava como intérprete autêntico dos interesses históricos expresso nos Anais. (...) Homem adicto aos postulados da Ilustração e do Liberalismo, ambos reinterpretados à luz dos interesses da grande propriedade territorial e escravista, o Visconde repele vigorosamente o providencialismo histórico que prevalecera na historiografia colonial. (...) Mas nosso historiador repele a perspectiva providencialista apenas para adotar uma perspectiva de determinismo idealista”, em particular no que tange às suas idéias sobre a política platina. Décio Freitas concluía de forma obtusa, notando que ele teria feito surgir um estilo de escrita assemelhado ao “relatório oficial”. Uma investigação historiográfica mais aprofundada poderia confirmar até que ponto alguns autores representativos da historiografia sul-riograndense do século passado podem ser considerados herdeiros dessa perspectiva explicativa. Nomes como os de Artur Ferreira Filho, Riograndino da Costa e Silva ou até mesmo Guilhermino César parecem ter sido influenciados pelo modelo de escrita da história do Rio Grande do Sul que foi inaugurado com Fernandes Pinheiro.
A iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul vem sanar uma lacuna presente nas últimas edições do livro, além de facilitar os estudos sobre a historiografia regional, ao permitir a consulta e divulgação da raríssima primeira edição da obra. Para concluir, cabe lembrar que os Anais apresentam um caráter canônico: neste sentido, a obra de Fernandes Pinheiro estaria para a escrita da história do Rio Grande do Sul como a obra de Varnhagen pode ser considerada para a escrita da história do Brasil.
* Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Membro efetivo do IHGRGS.
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